quinta-feira, 26 de novembro de 2009

DR. JOÃO ALVES PIMENTA II


AO DOUTOR JOÃO ALVES PIMENTA E ESQUADRÃO 149 (x)

Eu fui, dado nunca ter sofrido “baixa” e o Dr. Pimenta me dar sempre como apto, o graduado que provavelmente em mais operações participou. Cumpri integralmente todas as instruções do Alferes Ribeiro, meu comandante directo, com a coragem e racionalidade necessárias para o bom desempenho das missões. Cumpri a tropa e a guerra sempre numa actitude de serviço e lealdade quer para superiores quer para subordinados. Nunca fui ferido mas fui muitas vezes atacado, o meu pelotão teve 3 baixas, 2 mortos e um evacuado, dois deles eram da minha secção. No Mucondo, o tiro que matou o Pires, valente e digno Soldado raso, foi dirigido a mim e só por erro e por milímetros falhou o alvo apontado. Por feitio e por consciência moral, sempre encarei o cumprimento do dever, mesmo sob risco, como mais um acontecimento da vida a enfrentar com normalidade, sem tremideiras a pensar no futuro. Contudo a visibilidade deste comportamento, que ainda hoje pratico e julgo correcto, nunca ultrapassou o espaço de opinião do meu pelotão. Quero dizer com isto que, durante a nossa guerra, fora do pelotão, ninguém deu pela cumpridora normalidade da minha presença, penso até que o Cap. Abrantes apenas soube que existia após as nossas primeiras confraternizações anuais e o Cap. Fernandes nem isso. Contudo, não estando eu em observação sob o olhar nem no espírito dos meus camaradas deu-me todo o tempo e liberdade para ser eu próprio o observador do comportamento humano dos nossos militares face à guerra, ao perigo, ao isolamento, tal como reflecti e descrevi no meu livro sobre o Esquadrão 149.

Mas sem dúvida o maior e melhor observador, com olho clínico, médico-psiquiatra para além do de zeloso pai e mãe da família acampada, foi o nosso inimitável e ímpar Dr. João Alves Pimenta. Aliás, a parte substancial das observações sob o estado físico e moral das tropas que refiro no meu livro, são de sua exclusiva autoria, retiradas do livro que escreveu sobre o percurso militar do Esquadrão. O Dr. Pimenta tinha, tem, todas as qualidades que descrevi acima como minhas, mas ele tem inúmeras mais, tantas que abarcam todos os caracteres humanos, em tal qualidade e perfeição que ultrapassa qualquer fasquia, numa disponibilidade e entrega total e sob uma honestidade e afabilidade inultrapassáveis. Ele foi o grande responsável pela boa saúde física, mental e moral da nossa Unidade, além de homem de elevada competência técnica, moral e intelectual posta ao serviço de todos igual. Pôs todo o seu saber e mestria, sem distinções, ao serviço de todos e imediatamente grangeou o respeito e admiração do Esquadrão, soldados e oficiais sem excepções, e deste modo todos confiassem nele como médico, mas sobretudo todos sentissem e confiassem nele como o pai, a mãe, o mestre ou o confidente.

O nosso Dr. Pimenta curou tudo o que havia para curar e salvou todas as vidas que era possível ainda salvar. No Quixico, durante uma noite inteira, operou com lancetas e garrotes à luz de gambiarra e salvou pernas e uma vida. Estando em Luanda accionou todos os meios necessários para, mal o Palhavã chegasse ao hospital, tudo estivesse a postos e salvou-lhe a vida. Em todos locais de acampamento habitados, foi médico dos indígenas igual como para a tropa e, alertado correu sempre, noite ou dia, para a cubata na sanzala para salvar mães e crianças de parto. A sua postura face aos feridos e doentes foi sempre de total abnegação e guerra feroz à morte. Só não curou os que lhe chegavam à mão já mortos, mas mesmo a alguns desses considerou-os vivos para que fossem transportados e sepultados em Luanda, para mais facilmente poderem ser resgatados depois os corpos.

Quem ler o meu livro com alguma atenção crítica, facilmente detectará ao longo de toda a narrativa, mas muito especialmente em alguns poemas, a existência de dois heróis acima de todos; o Cap. Rui Abrantes e o próprio Dr. Pimenta. O livro termina afirmando, como corolário do percurso e feitos militares do Esquadrão e consequentes constantes perigos e duros sofrimentos que passámos, ao longo de todo o tempo de guerra, que afinal todos foram merecidamente heróis. É verdade, mas a força de vontade, a força anímica, a coragem serena, a conduta cívica e militar exemplar existente no interior da Unidade, que conduziu ao comportamento heróico geral, teve a sua fonte, foi cultivada e tornada organizada e consistente por força da capacidade e exemplo destes dois heróis maiores. Ao Cap. Abrantes coube, e fê-lo magnificamente, ser o estratega militar da tropa, e como tal foi o pai da unidade militar dentro do Esquadrão, ao Dr. Pimenta coube, e fê-lo exemplarmente, ser o estratega da condição física, psíquica e moral da tropa e como tal foi o pai da unidade familiar dentro do Esquadrão. Deve-se ainda ao Cap. Abrantes, como comandante das tropas em guerra, o nosso agradecimento pelo facto de ter a visão e o tacto militar de ter percebido os dotes superiores ímpares do Dr. Pimenta, dando a este toda a liberdade para exercer o seu munus de pacificador de almas entre a tropa. Só pela conjugação e perfeita complementaridade das qualidades e acção destes dois homens, ainda para mais coadjuvados por um grupo de oficiais valorosos, valentes e inteligentes, que reconheciam nestes dois superiores, qualidades humanas extra de comando, chefia e exemplo, que por sua vez também souberam transmitir e incutir, sem baixar a qualidade, à boa massa humana de sargentos e soldados, foi possível atingir um grau de unidade, coragem e prontidão muito além do comum e normalmente visto noutras Unidades militares.
O Dr. Pimenta foi para nós, certamente, tudo isso que nós sentimos que Ele foi e muito mais coisas boas, face ao teatro de guerra e isolamento prolongado no mato rodeado de perigo de morte por todos os lados, mas sobretudo Ele foi sempre o nosso sábio Irmão Mais Velho.


Fomos para a guerra moços cheios de ingenuidade individual, e voltámos da guerra homens feitos cheios de humanidade solidária. Fomos para a guerra armados de inocente mentalidade guerreira, voltámos da guerra armados de uma consciente e firme mentalidade de força de paz e trabalho. Fomos para a guerra sem vontade e à força, voltámos da guerra com uma enorme força de vontade. Fomos para a guerra fracos, submissos e mal preparados, voltámos da guerra mais fortes, mais sábios e lutadores vivos. Fomos para uma guerra suja como são todas as guerrilhas, fomos sempre apenas e só militares e voltámos limpos e de consciência tranquila. Tudo isso devemos á sorte de ter pertencido a uma Unidade Militar, chefiada por tais condutores e educadores de homens, sem imposições e violências de galões.
Só para ter conhecido e recebido formação de homens assim, foi uma honra enorme ter pertencido ao Esquadrão de Cavalaria 149. Eu tenho orgulho de ter sido furriel miliciano, combatente do Esquadrão de Cavalaria 149.



(x) - Lido no almoço de confraternização e homenagem ao Dr. João Alves Pimenta em Évora,13.10.2007 pelo autor,

Adolfo Pinto Contreiras
Furriel miliciano do Esq.149

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